1.5 A velhice como construção
social
Neste ponto tentaremos analisar o processo através do
qual se constrói e se institucionaliza a categoria “Velhice”,
ou seja, perceber em que base se define quem é velho e
quem o não é. Apesar de, formalmente, as nossas
sociedades atribuírem a velhice a uma categoria de idade,
verifica-se que essa atribuição é variável
com as estratificações sociais.
De facto, os princípios de classificação
do mundo, mesmo os mais naturais, remetem-nos sempre para os seus
fundamentos de natureza social. Sem falar dos meios culturais,
os estigmas físicos e, mais geralmente, as propriedades
biológicas, como idade e sexo, servem de critérios
de classificação dos indivíduos no espaço
social. A elaboração destes critérios está
geralmente associada ao aparecimento de instituições
e de profissionais especializados que encontram nestas definições
o suporte das respectivas actividades.
O envelhecimento, processo individual de vida, surge ligado à
noção de pessoa que varia de sociedade para sociedade.
Lima e Viegas (1988) questionam a atribuição de
uma igualdade jurídica às noções de
indivíduo (a designar todo o ser humano) e de pessoa, baseando-se
na distinção estabelecida entre estas duas noções
pelo antropólogo Marcel Mauss (1938). «A noção
de pessoa é uma categoria de pensamento produzida em todas
as sociedades, que traduz um modelo de relações
entre os membros de uma sociedade e, simultaneamente, a relação
destes com o contexto social em que se inscrevem. É um
conceito que cristaliza em si valores, padrões de comportamento,
o sistema moral, costumes e códigos jurídico-religiosos
específicos.» (Lima e Viegas, 1988: 150).
A noção de indivíduo insere-se no ciclo
de vida biológico (nascimento, crescimento e morte) natural
a todo o ser humano. A forma variável como este ciclo biológico
é vivenciado está directamente relacionada com os
contextos sociais decorrentes de uma diversidade cultural e histórica.
A sociedade ocidental, assumiu a definição do estatuto
de pessoa segundo padrões baseados na igualdade jurídica.
Caminhou-se por aí para um entendimento em que a periodização
das fases do ciclo de vida dos indivíduos coincidia com
uma cronologia de idades biológicas absolutas.
Maurice Halbwachs (1935) contesta o facto de a idade servir de
princípio para a constituição de grupos socialmente
reconhecidos. Afirma o autor que a idade não é um
dado natural mesmo quando serve de instrumento para medir a evolução
biológica dos indivíduos ou dos animais.
A idade não é um dado imediato da consciência
universal porque «um indivíduo humano isolado, privado
de todas as relações com os seus semelhantes e sem
apoio na experiência social, não saberá mesmo
que vai morrer». Acrescenta: «é pois uma noção
social, estabelecida por comparação com os diversos
membros do grupo» (Halbwachs, 1935:118, citado por Lenoir,
1989).
Ariés (1975) reforça esta ideia ao afirmar que
a primeira vez que a idade aparece como critério de classificação
é em França, no século XVI, aquando da generalização
da inscrição dos nascimentos nos registos paroquiais.
Vê-se, portanto, que a noção de idade, expressa
num dado número de anos, é o produto de uma determinada
prática social que se explica sobretudo pelas necessidades
de uma prática administrativa.
Um outro dado que remete igualmente para o critério da
idade é a noção de «velhice demográfica»
que varia segundo a composição da população.
Disso dá conta um estudo efectuado por Halbwachs sobre
a nupcialidade em França durante e depois da guerra. Mostra
como a definição social das idades é elaborada
em função da composição numérica
das gerações. Explica que uma das consequências
da guerra foi a diminuição da população
masculina com idades entre os 23 e 38 anos. Esta circunstância
teve como efeito elevar os jovens na escala das idades, compelindo-os
a exercer responsabilidades até aí da competência
dos que tinham mais idade. «Esta transformação
é acompanhada de uma redefinição da idade
legítima para o casamento e mais geralmente da idade em
que os "jovens" acedem ao estatuto do "adulto"»
(Halbwachs, 1935: 270 citado por Lenoir, 1989). Sugere isto que
a manipulação das classes de idade implica sempre
uma redefinição dos poderes atribuídos aos
diferentes momentos do ciclo de vida próprio de cada classe
social.
O valor dos indivíduos no mercado de trabalho é
também uma das variáveis essenciais que influencia
a determinação do envelhecimento social. A importância
da actividade profissional na definição do valor
social dos indivíduos é um aspecto que Lenoir (1989)
aponta quando se refere à relação directa
entre hierarquia social e hierarquia profissional. «A hierarquia
das formas e dos graus de envelhecimento no campo das profissões
parece reproduzir a hierarquia social e respeitar essa "hierarquia"
até no interior das empresas.» (Lenoir, 1989: 67).
A manipulação da idade da reforma é particularmente
exemplificativa dessa ideia se tivermos em conta que nela estão
implícitas as duas dimensões referidas na definição
das categorias de idade: a oposição de grupos sociais
e o confronto entre gerações.
Um inquérito aplicado em França, em 1961, forneceu
dados sobre a atitude de 100 chefes e directores de grandes e
médias empresas privadas, perante a idade a partir da qual
as diferentes categorias sociais começam a envelhecer.
A análise desses dados aponta para um envelhecimento mais
precoce para os membros das classes baixas: os serventes são
considerados produtivos a 100%, em média até aos
51,4 anos; os operários qualificados até aos 53,5
anos; os que têm cargos de direcção até
aos 55,9 anos; os quadros técnicos até aos 57,9
anos e não indicam qualquer idade para os chefes de empresa
(Haut-Comité consultatif de la Population et de la Famile,
1962). O critério da idade associa-se aqui ao critério
da produtividade em cada profissão para designar quem é
«velho».
A divisão social do trabalho estrutura a repartição
das tarefas entre os grupos sociais e portanto também as
categorias de percepção e de avaliação
desses grupos. Ela corresponde a uma luta entre os grupos sociais
para impôr os princípios de uma dada visão
do mundo social, de forma a manter ou a transformar a posição
de cada um no espaço social (P. Bourdieu, 1984, pp. 3-12).
Numa sociedade em que o estatuto da pessoa é ligado ao
trabalho e à rentabilidade, a reforma provoca, desde logo,
uma primeira exclusão: a reforma vai sublinhar a sua não
produtividade e a sua inutilidade económica.
São os interesses da classe dominante económica
que determinam as classificações de classes sociais
e de grupos etários evidenciados por discursos e apelações
elaboradas por conselheiros, serviços especializados e
estruturas comerciais no contexto da concertação
social. O conjunto destes procedimentos induz a uma ordenação
social de forma a que os cidadãos interiorizem esses valores
de segmentação etária, que Saül Karsz
(1988) designa por «olhar exterior» e que qualifica
e dignifica a pessoa jovem e desqualifica a pessoa idosa.
De facto, quando uma pessoa rejeita ou não se dispõe
a assumir os comportamentos e atitudes atribuídos à
velhice, o «olhar exterior» ajuda-a a interiorizá-los.
«O olhar exterior procede a um apelo à ordem. Enuncia
um princípio da realidade tanto mais sólido e razoável
que nem os dados, nem os factos que ele exibe são inventados
por ele. O sujeito tem muita dificuldade em se furtar durante
muito tempo e sistematicamente.» (Karsz, 1988: 36).
Saül Karsz caracteriza a velhice como «o processo
discursivo e institucional que visa uma adequação
tão perfeita quanto possível entre, por um lado,
um sujeito real e concreto que tem uma certa idade, um modo de
vida dado, problemas e dificuldades de diversa natureza mas também
forças e capacidades reais e, por outro lado, um conjunto
de representações, definições e dispositivos
a partir do qual o dito sujeito é percebido e tratado,
seja a configuração "velhice" a que é
suposto ser eleito.» (Karsz, 1988: 37).
Em síntese, a imagem social da "velhice" assenta
numa aparente confusão entre o envelhecimento biológico
e o envelhecimento social. A sua construção estriba-se
numa base material independente do processo orgânico. O
significado de "velhice" apoia-se em aspectos materiais,
da luta de classes e de idades, ou seja, numa interpretação
socio-cultural do envelhecimento biológico.
Para além da velhice biológica, a história
e o sistema das relações sociais fornecem um contexto,
ou ambiência, bem como as referências económicas,
institucionais, políticas e até afectivas. As variações
históricas e sociais, específicas de cada sociedade,
virão escorar a variável velhice biológica,
que é comum a todos as pessoas em todas as sociedades.
As atitudes e estereótipos cujo carácter parcelar
é aceite por todos através de uma imagem que contém
componentes intelectuais, afectivas e comportamentais são
relativas a uma dada sociedade. Pode-se supor que estas imagens
são “sensações mentais”, ou seja,
impressões que os objectos e as pessoas deixam no nosso
cérebro. À semelhança das sensações
ou das percepções, estes “átomos cognitivos”,
estas estimulações duplas externas combinam-se para
produzir percepções ou imagens diferentes. (Moscovici,
prefácio de Herzlich,1996:9).
O juízo de valor aparece com um juízo de facto
após a constituição do objecto, neste caso,
o da velhice. Os pontos de vista dos indivíduos ou dos
grupos são encarados tanto pelo seu carácter de
comunicação como pelo seu carácter de expressão.
Em geral, as imagens e as opiniões, são recenseadas,
estudadas, pensadas, unicamente por aqueles que manifestam oposição
a essas imagens e opiniões, com base numa escala de valores
de um indivíduo ou de uma comunidade. Na realidade, eles
comunicam a sua maneira de pensar e ver aos seus interlocutores
preparando-se intelectualmente para isso.
É neste sentido que surge a definição da
velhice como a «representação ideológica
sob a qual as pessoas cronologicamente idosas são reconhecidas
enquanto ilustrações animadas da velhice e por outro
lado desconhecidas enquanto sujeitos de desejos inscritos em classes
sociais determinadas.» (Karsz, 1988: 45).
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